Wednesday, 16/10/2024 - 13:57
05:16 | 28/06/2019

Nunca se diga que um pobre alfaiate não pode ter sucesso na vida e, até mesmo, alcançar honrarias muito elevadas; basta que ele tope com o caminho certo e, sobretudo, que tenha sorte para vencer como os outros.
Um certo alfaiatinho, esperto, maneiroso, gentil, resolveu um dia correr mundo. Depois de muito andar, chegou a uma grande floresta e, não conhecendo o caminho, perdeu-se lá dentro. Chegou a noite e ele não teve outro remédio senão procurar abrigo naquela horrível solidão.
Teria, certamente, boa cama no musgo fofo, mas o terrível medo das feras não o deixava sossegado, e acabou por decidir-se a passar a noite em cima de uma árvore.
Escolheu um carvalho bem alto, trepou até à ponta do galho e agradeceu a Deus por ter trazido consigo o seu ferro de engomar; do contrário, o vento que soprava entre as copas das árvores, o teria carregado para longe.
Depois de passar algumas horas na escuridão, batendo os dentes de medo, avistou não muito longe dali uma luzinha a brilhar; calculou que se tratava de uma luz provinda da habitação de um ser humano, onde certamente estaria bem melhor do que encarapitado no galho de árvore; então desceu, cautelosamente, e dirigiu os passos na direção da luz.
Tendo andado um pouco, chegou diante de uma casinha feita de juncos e caniços entrelaçados. Bateu corajosamente à porta, que logo se abriu, e, à claridade da luz que se projetava para fora, viu um anão bem velhinho, vestido com uma roupa de várias cores.
– Quem sois e o que desejais? – perguntou o velhinho com voz estridente.
– Sou um pobre alfaiate, – respondeu ele, – que foi surpreendido pela noite em plena floresta. Venho pedir-vos a caridade de um abrigo até amanhã cedo, na vossa choupana.
– Segue o teu caminho, – respondeu grosseiramente o velho; – não quero amolações com vagabundos; vai procurar abrigo noutro lugar.
Com isso fez menção de retirar-se e fechar a porta, mas o alfaiate segurou-o pela manga e tão calorosamente suplicou, que o velho, que no fundo não era tão mau como se mostrava, acabou por comover-se e o recebeu na choupana. Deu-lhe o que tinha para comer e, em seguida, indicou-lho num canto uma boa cama, a fim dique descansasse até ao dia seguinte.
O alfaiatinho estava tão moído de cansaço que não teve necessidade de ser embalado; ferrou no sono e dormiu gastasamente até o dia claro, e não teria pensado em levantar-se se não fora um grande escarcéu que vinha de fora e que o assustou. Ouvia-se, através das paredes; finas da choupana, gritas, urros e um forte pateado. Movido por um impulso de coragem, o alfaiate pulou da cama, vestiu-se depressa e correu para fora. Em frente da choupana, deparou com estranho espetáculo: um grande touro, todo preto, lutando encarniçadamente com um belo veado. Investiam um contra o outro tão furiosamente que até estremecia a terra e os rugidos enchiam o espaço.
O alfaiate quedou-se bom pedaço de tempo a olhar, sem poder imaginar qual dos dois sairia vitorioso: por fim, o veado enterrou os chifres no ventre do antagonista e o touro, soltando um espantoso mugido, estrebuchou e caiu estendido no chão. Com mais algumas valentes chifradas, o veado deu cabo dele.
O alfaiate, paralisado de espanto, assistira à luta sem fazer um gesto e estava aí parado quando, com uma rapidez incrível, o veado correu para ele e, antes que tivesse tempo de fugir, sentiu-se preso entre as forquilhas do seus chifres.
Passou-se bastante tempo antes que o alfaiate se refizesse do susto. O veado, entretanto, corria a toda velocidade através de valas e sebes, de montes e charnecas, de prados e bosques e o pobre alfaiate, meio morto de medo, segurava-se fortemente com as duas mãos nos chifres dele, completamente entregue ao seu destino. E a impressão que tinha era de estar voando.
Até que, por fim, o veado se deteve diante da parede abrupta de uma rocha e o deixou cair suavemente ao chão. O alfaiate, mais morto que vivo, precisou de algum tempo para recuperar o uso da razão. Quando, por fim, voltou completamente a si, o veado, que ficara junto dele, deu violenta chifrada contra uma porta dissimulada na rocha, escancarando-a; e dessa abertura saíram línguas de fogo e densa fumaça, no meio da qual o veado desapareceu.
O alfaiate ficou aí, sem saber o que fazer e nem para que lado dirigir os passos, pois queria sair daquele ermo e voltar novamente para o meio dos homens. Estava ele assim, indeciso, sem saber que resolução tomar, quando de dentro da rocha ressoou uma voz, dizendo-lhe:
– Entra, não tenhas medo, não te acontecerá mal nenhum.
Para dizer a verdade, ele hesitava em atender ao convite mas, de repente, como que impelido por força misteriosa, ele obedeceu à voz e, entrando por uma porta de ferro, foi dar a uma enorme sala, onde teto, paredes e pavimentos eram todos feitos de luzidas pedras quadradas; em cada uma dessas pedras havia gravados sinais para ele desconhecidos.
O alfaiate observou tudo muito admirado e já se dispunha a sair quando ouviu, novamente, a mesma voz dizer:
– Coloca-te bem em cima da pedra que está no centro da sala; grande felicidade te está reservada.
A coragem do alfaiate tinha atingido tão elevado grau que ele obedeceu sem pestanejar. Sob os pés sentiu a pedra mover-se e afundar lentamente. E, quando ela se deteve, o alfaiate olhou em volta e viu-se numa sala tão ampla quanto a anterior.
Nesta sala, porém, havia muito mais o que observar e admirar. Nas paredes havia uma porção de nichos, nos quais estavam arrumados vasos de vidro transparente, cheios de um líquido colorido e de fumaça azulada. No pavimento, um colocado diante do outro, estavam dois esquifes de vidro, que logo lhe despertaram a atenção. Aproximou-se de um deles e viu que encerrava um esplêndido edifício parecido com um castelo, tendo em volta diversas construções, cavalariças, celeiros e tudo o que faz parte de um rico castelo. Essas coisas todas eram muito minúsculas, mas trabalhadas com infinito primor e graça; tudo parecia ter sido cinzelado por mão de mestre, com a máxima perfeição.
Empolgado por aquelas raridades, ele não teria despregado o olhar delas se a voz não tomasse a ressoar, convidando-o, desta vez, a virar-se e contemplar, também, o outro esquife de vidro.
Impossível dizer até que ponto aumentou a sua admiração, quando viu dentro dele uma jovem surpreendentemente bela! Dir-se-ia que ela estava adormecida, envolta em maravilhosos e longos cabelos dourados, como que num manto precioso! Tinha os olhos fechados, mas o colorido fresco do rosto e uma fita, que se movia com a respiração, indicavam que ela estava viva.
Com o coração a pulsar fortemente, o alfaiate quedava-se a contemplar embevecido a linda jovem quando, repentinamente, ela abriu os olhos. Ao vê-lo ai ao seu lado, ela estremeceu de doce enleio e exclamou:
– Justo céu! A minha libertação está chegando! Depressa, depressa; ajuda-me a sair desta prisão. Se conseguires puxar o ferrolho que fecha este esquife, logo cessará o encanto.
Sem hesitar um minuto sequer, o alfaiate puxou o ferrolho; a moça levantou depressa a tampa de vidro e saiu do esquife, correndo para um canto da sala. Então, envolveu-se num rico manto e sentou-se numa pedra. Estendeu a mão ao rapaz, que logo se aproximou e, depois de beijá-lo nos lábios, disse-lhe:
– Meu libertador, tão longamente esperado! O céu misericordioso enviou-te para que pusesses termo aos meus sofrimentos. No mesmo dia em que estes terminarem, começará a tua felicidade, pois tu és o noivo que me foi destinado pelo céu. Serás muito amado, possuirás todos os bens terrenos e tua vida decorrerá na mais suave felicidade. Agora senta-te aqui e ouve a minha história.
“Eu sou filha de um opulento conde e imensamente rica. Meus pais faleceram, deixando-me na mais tenra idade; no seu testamento, recomendaram-me a meu irmão mais velho, em cuja casa fui criada. Nós dois nos amávamos com grande ternura e combinávamos tão bem quanto aos gostos e quanto à maneira de pensar, que decidimos ambos nunca nos casar e viver juntos até que a morte nos separasse.
“Em nossa casa jamais faltava boa companhia: vizinhos e amigos vinham frequentemente visitar-nos, sendo todos recebidos com a maior cordialidade.
Assim, pois, aconteceu que uma tarde chegou ao nosso castelo um cavaleiro desconhecido e, sob pretexto de que já não lhe era possível alcançar nesse dia a próxima aldeia, pediu que lhe déssemos pousada por uma noite. O pedido foi por nós atendido com solícita cortesia e, durante o jantar, ele nos entreteve muito agradavelmente com variada conversação e narrativas. Meu irmão ficou tão encantado que o convidou a permanecer alguns dias conosco; após breve hesitação ele anuiu.
“Quando saímos da mesa já ia tarde a noite; foi indicado um bom quarto ao hóspede e eu, cansada como estava, apressei-me em estender os membros no meu fofo leito. Não tardei a adormecer, mas logo fui despertada por suavíssima música, cujo som eu não conseguia compreender de onde provinha; quis apelar para a minha camareira que dormia no quarto ao lado mas, com grande espanto, senti que força misteriosa me impedia de falar. Como se um peso me comprimisse o peito, sentia-me literalmente impossibilitada de emitir o mais leve som.
“Nisto, à pequena claridade da lâmpada de cabeceira, vi o forasteiro introduzir-se no meu quarto, que estava bem fechado por duas portas. Ele aproximou-se de mim e disse que, graças às forças mágicas de que dispunha, fizera ressoar aquela música deliciosa com o fim de me despertar e agora vinha em pessoa, penetrando através das portas trancadas, com a intenção de oferecer- me o coração e obter a minha mão. Mas, tão grande era a minha aversão pelas suas artes mágicas, que não lhe dei a honra de uma resposta. Ele ficou algum tempo imóvel, aguardando, sem dúvida, resposta favorável; eu, porém, continuei calada. Então ele declarou muito irritado, que se vingaria e acharia o meio de punir cruelmente o meu orgulho. Tendo dito estas palavras, retirou-se do quarto por onde viera.
“Inútil dizer que passei a noite em apreensão tremenda; só consegui cochilar um pouco aí pela madrugada. Quando despertei, corri depressa ao quarto de meu irmão para informá-lo do ocorrido, mas não o encontrei e o criado disse-me que saira para caçar logo ao raiar do dia, em companhia do forasteiro.
“Assaltou-me, logo, um triste pressentimento. Vesti-me o mais depressa possível, mandei selar o cavalo e, acompanhada somente por um escudeiro, galopei velozmente para a floresta. O criado foi lançado fora da sela em consequência da queda do cavalo, que fraturou a perna, por isso não pôde mais me acompanhar. Então continuei galopando sem deter-me e, depois de alguns minutos, vi o forasteiro aproximando-se de mim e trazendo um belo veado preso ao laço.
“Perguntei-lhe, imediatamente, onde havia deixado meu irmão e como havia apanhado aquele veado, de cujos olhos dolorosos escorriam lágrimas. Ao invés de responder, o homem soltou uma gargalhada. Furiosa com aquela atitude, saquei da pistola e descarreguei-a à queima-roupa naquele monstro; mas a bala ricocheteou batendo em seu peito e veio atingir em cheio a cabeça do cavalo. Fui lançada ao chão; nesse momento, o desconhecido murmurou algumas palavras e eu perdi completamente os sentidos.
“Quando voltei a mim, encontrei-me dentro de um esquife de vidro, nesta caverna subterrânea. O necromante apareceu ainda uma vez, contou-me que havia transformado meu irmão naquele cervo que levava preso ao laço, que havia reduzido a proporções minúsculas o meu castelo com todos os seus pertences, encerrando-o noutro esquife de vidro; e que havia transformado os meus criados em fumaça e os havia aprisionado em vasos de vidro. Se eu me submetesse, docilmente, à sua vontade, faria facilmente voltar todas as coisas ao estado normal; só teria de destapar os vasos para que tudo retomasse o verdadeiro aspecto. Mantive-me calada, tal como fizera da primeira vez. Ele, então, desapareceu, abandonando-me nesta prisão, onde fui acometida por sono letárgico.
“Entre as imagens que, em sonho, via perpassar pela mente, havia também a consoladora imagem de um jovem que viria, sem tardar, libertar-me. E eis que hoje, ao abrir os olhos, deparei contigo e logo compreendi que meu sonho se tornava realidade! Ajuda-me a realizar todas as outras coisas vislumbradas em sonho. Antes de mais nada, temos de colocar sobre aquela pedra larga o esquife de vidro que tem encerrado o meu castelo.
Assim que a pedra recebeu o peso do esquife, ergueu- se com o rapaz e a jovem e, pela abertura do teto, chegou à sala superior, onde facilmente conseguiram sair para fora. Então a jovem levantou a tampa e foi maravilhoso ver como o castelo, as casas e demais construções iam aumentando e readquirindo o verdadeiro tamanho.
Depois, os dois jovem voltaram ao interior da caverna e fizeram a pedra carregar para cima os vasos cheios de fumaça. Conforme eram destapados pela moça, a fumaça saía impetuosamente e se transformava em seres vivos, nos quais ela reencontrou todos os criados e sua gente.
Mas a alegria atingiu o auge quando ela viu surgir o irmão que, tendo matado o necromante sob a forma de touro, recuperara o verdadeiro aspecto e agora vinha ao seu encontro.
Cumprindo a promessa, ela, no mesmo dia, ao pé do altar, deu a mão ao alfaiate felizardo.

 



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