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17:21 | 27/06/2019

Houve, em tempos muito remotos, uma grande guerra, finda a qual muitos soldados foram licenciados. Entre eles havia um, chamado Folgazão, por causa do seu permanente bom humor; na hora da baixa, recebeu apenas um pão de munição e quatro vinténs, e com isso foi andando. À beira da estrada, estava São Pedro sentado, disfarçado em pobre mendigo e, quando Folgazão se aproximou, pediu-lhe esmola. Ele, então, respondeu: – Meu caro mendigo, que posso dar-te? Sou um pobre soldado que acaba de ter baixa e tenho como única fortuna este pão e quatro vinténs. Não será preciso muito para lhe ver o fim e, então, terei de mendigar como tu. Contudo, quero dar-te alguma coisa.
Partiu o pão em quatro pedaços, deu um ao apóstolo e mais um vintém. São Pedro agradeceu muito e foi andando; postou-se um pouco mais adiante, disfarçado em outro mendigo e, quando o soldado ia passando por ele, tornou a pedir-lhe uma esmola. Folgazão respondeu como antes e deu-lhe outro pedaço de pão e mais um outro vintém. São Pedro agradeceu e foi postar-se mais adiante, ainda sob forma de um pobre mendigo, e pediu-lhe uma esmola. Folgazão deu-lhe o terceiro pedaço de pão com outro vintém. São Pedro agradeceu e Folgazão seguiu o caminho; nada mais possuia do que um pedaço de pão e um único vintém.
Entrou numa hospedaria, pediu um copo de cerveja e comeu o pão.
Depois, pôs-se novamente a caminho e eis que São Pedro veio-lhe ao encontro, sob o aspecto de um soldado licenciado, dizendo-lhe: – Bom dia, camarada; não poderías dar-me um pedaço de pão e um vintém para tomar um gole de cerveja?
– Onde irei buscá-los? – respondeu Folgazão: – recebi a baixa e além dela nada mais que um pão e quatro vinténs. Encontrei pelo caminho três mendigos, a cada um deles dei um quarto de pão e um vintém. O último quarto comi-o agora na hospedaria e com o último vintém tomei um copo de cerveja. Agora estou a nenhum e se tu, também, não tens nada, poderemos pedir esmolas juntos.
– Não, – respondeu São Pedro, – ainda não estou reduzido a isso; eu entendo alguma coisa de medicina e pretendo assim ganhar para o meu sustento.
– Está certo, – disse Folgazão; – eu não entendo nada disso, portanto, irei mendigar sozinho.
– Ora, vem comigo! – disse São Pedro. – Poderás talvez ajudar-me; se eu ganhar alguma coisa, ofereço- te a metade.
– Ótimo! – disse Folgazão, e juntos saíram andando.
Logo, na primeira aldeia que atravessaram, passaram pela casa de camponeses onde se ouviam choros e lamentos; entraram e viram o dono da casa deitado na cama, agonizante; a mulher, e toda a família, achava-se em volta dele, chorando e gritando.
– Cessai de gritar e chorar, – disse São Pedro; – vou curar esse homem.
Tirou do bolso um frasco de unguento e, num instante, curou o doente, o qual se levantou vivo e são como um peixe. Marido e mulher, no auge da alegria, não sabiam como agradecer.
– Como poderemos recompensar-vos? Que poderemos dar-vos?
São Pedro, porém, não queria aceitar nada e quanto mais insistiam mais ele recusava. Folgazão deu-lhe uma cotovelada, dizendo baixinho: – Aceita alguma coisa; bem sabes que estamos necessitando.
Por fim, a mulher do camponês trouxe um lindo cordeirinho pedindo a São Pedro que o aceitasse, mas ele não queria. Então o amigo Folgazão dando-lhe uma catucada nas costelas, disse-lhe: – Pois aceita, seu bobo, nós bem que precisamos!
Então São Pedro disse: – Pois bem, aceitarei o cordeirinho, mas eu não o carregarei; se quiseres, tens que carregá-lo tu.
– Não seja essa a dúvida, – respondeu Folgazão; – eu me incumbo disso.
Pôs o cordeiro no ombro e continuaram o caminho, chegando a uma floresta; o cordeiro começava a pesar e Folgazão, que já estava sentindo fome, disse ao companheiro:
– Olha que lugar convidativo; aqui podemos assar o cordeiro e comê-lo.
– Está bem, – disse São Pedro – mas não quero cuidar da cozinha; se queres cozinhar, aqui tens um caldeirão, enquanto isso vou passear um pouco até ficar tudo pronto. Mas não podes começar a comer antes de eu voltar; estarei de volta em tempo.
– Não tenhas medo, vai; – disse o amigo Folgazão; – sei lidar na cozinha, prepararei tudo.
São Pedro afastou-se e Folgazão matou o cordeiro, acendeu o fogo, pôs a carne no caldeirão e deixou ferver. Já estava pronta e o apóstolo nada de aparecer; então o amigo Folgazão retirou o cordeiro da panela, trinchou-o e encontrou o coração.
– Este é o melhor bocado! – disse, e provou-o. De fato, era tão gostoso que acabou por o comer todo.
Finalmente chegou São Pedro, dizendo: – Podes comer todo o cordeiro, eu só quero o coração; dá-me.
O amigo Folgazão pegou o garfo e a faca e fingiu procurar atentamente no meio da carne, sem conseguir encontrar o coração; por fim disse, meio sem jeito: – Não o encontro!
– Onde estará? – perguntou o apóstolo.
– Não sei, – respondeu Folgazão; – mas veja, que tolos somos os dois! Aqui a procurar o coração do cordeiro e não nos lembramos de que o cordeiro não tem coração.
– Oh! – disse São Pedro – que novidade! Todos os animais têm um coração; por quê o cordeiro não tem?
– Não tem, estou certo disso; o cordeiro não tem coração; reflete bem e verás como é certo.
– Bem, bem, não falemos mais! – disse São Pedro; – desde que não tem coração, não quero mais nada, podes comer o cordeiro todo.
– O que não puder comer, guardarei na mochila, – disse Folgazão.
Comeu metade do cordeiro e o resto guardou na mochila.
Depois continuaram o caminho e São Pedro fez com que uma torrente de água lhes atravessasse o caminho e eles deviam transpô-la.
– Podemos atravessar a nado, – disse São Pedro; – vai na frente.
– Não, – respondeu o amigo Folgazão; – vai tu primeiro. – E pensava: “Se ele for para o fundo, eu ficarei por aqui.”
São Pedro atravessou e a água só lhe chegava aos joelhos. Então o amigo Folgazão dispôs-se, também, a atravessar, mas a água subiu e chegou-lhe ao pescoço.
– Meu irmão, socorro! – gritou ele.
São Pedro respondeu-lhe: – Queres confessar que comeste o coração do cordeiro?
– Não, não o comi! – gritou o amigo.
Então a água cresceu mais e chegou-lhe até à boca.
– Socorro, irmão, socorro! – gritou o soldado.
São Pedro tornou u dizer: – Confessas ter comido o coração do cordeiro?
– Não, – respondeu ele, – não comi.
Apesar disso São Pedro não permitiu que ele se afogasse; fez descer a água e ajudou-o a passar para a outra margem.
Continuaram o caminho e chegaram a um reino, onde souberam que a filha do rei estava à morte.
– Olá, irmão! – disse o soldado a São Pedro – que bela ocasião para nós; se a curarmos, ficaremos bem para o resto da vida!
E como São Pedro não se apressasse, continuou: – Vamos, irmão do coração, mexe as pernas e corramos um pouco para chegar a tempo e salvar a princesa.
Entretanto, por mais que Folgazão o incitasse, São Pedro caminhava sempre mais devagar; até que por fim ouviram dizer que a princesa havia falecido.
– Aí está! – disso o amigo Folgazão, – tudo por culpa da tua indolência, viste?
– Acalma-te, – respondeu São Pedro, – eu posso fazer algo mais do que curar os doentes; posso também ressuscitar os mortos.
– Bem, se é assim, tanto melhor; – disse Folgazão; – se isso conseguires, o rei nos dará a metade do reino.
Chegaram ao castelo, onde toda a corte estava de luto fechado. São Pedro anunciou ao rei que faria ressuscitar a princesa. Levaram-no para junto dela e ele disse:
– Trazei-me um caldeirão cheio de água.
Quando lho trouxeram, mandou sair todo mundo; somente Folgazão teve licença do ficar com ele. Aí retalhou todos os membros da defunta; colocou-os dentro da água; acendeu um bom fogo sob o caldeirão e deixou-os ferver. Quando a carne se desprendeu toda, pegou os ossos brancos colocou-os sobre a mesa dispondo-os um perto do outro, na sua ordem natural. Então disse por três vezes:
– Em nome da Santíssima Trindade, levanta-te, morta!
Na terceira vez, ela se levantou, viva, alegre e bonita como nunca. O rei, louco de alegria, disse a São Pedro:
– Pede-me a recompensa que desejas; mesmo que seja a metade do meu reino, eu a darei de boa vontade.
Mas São Pedro respondeu:
– Não quero nada.
– Oh, que imbecil! – disse o amigo Folgazão, cotucando-lhe as costas. – Não sejas tão cretino; se tu não queres nada, eu necessito de alguma coisa!
Mas São Pedro manteve-se firme na sua recusa. Entretanto, notando o rei que o outro não partilhava dos sentimentos do companheiro, mandou o tesoureiro encher-lhe a mochila de moedas de ouro.
Depois disso, continuaram a viagem e, tendo chegado a uma floresta, São Pedro disse:
– Agora vamos repartir esse ouro.
– Sim, – respondeu o outro, – vamos reparti-lo.
São Pedro repartiu as moedas em três partes iguais, enquanto isso Folgazão ia pensando: “Quem sabe lá que ideia se lhe meteu de novo na cabeça! Divide em três partes e somos apenas dois.” Mas São Pedro exclamou:
– Reparti com equidade: uma parte para mim, outra para ti e a terceira para aquele que comeu o coração do cordeirinho.
– Oh, fui eu mesmo! – respondeu Folgazão, e mais que depressa meteu o ouro no bolso. – Podes me acreditar, comi-o eu!
– E’ impossível! – retrucou São Pedro; – um cordeirinho não tem coração!
– Ora, ora, meu irmão, que ideia! Um cordeiro tem um coração tal como os outros animais; por quê só ele não deveria tê-lo?
– Está bem, não discutamos mais, – disse São Pedro; – fica com todo o dinheiro; mas eu não continuarei em tua companhia; vou seguir o meu caminho sozinho.
– Como queiras, meu coração, – respondeu o soldado; – adeus e passes muito bem.
São Pedro seguiu por uma estrada oposta e Folgazão ia pensando: “E’ melhor que se vá; no fim de contas ele é um peregrino muito singular!”
Agora possuía dinheiro à vontade, mas não sabia empregá-lo com critério. Gastou, deu, e, por fim, depois de pouco tempo, estava novamente sem um níquel. Nessas condições, chegou a um país onde ouviu dizer que a filha do rei havia morrido.
– Olá! – disse, – isto começa bem. Esta eu mesmo ressuscitarei e far-me-ei pagar melhor do que a outra.
Apresentou-se ao rei, oferecendo-se para ressuscitar-lhe a filha. O rei ouvira contar que um soldado aposentado andava ressuscitando os defuntos e julgou que fosse o amigo Folgazão; mas, como não tinha muita confiança nele, primeiro quis sabor a opinião de seus conselheiros, os quais responderam que tentasse, pois a filha estava mesmo morta.
Então, o amigo Folgazão mandou que se retirassem todas as pessoas; cortou os membros da princesa colocando-os dentro do caldeirão, que pôs para ferver, exatamente como vira São Pedro fazer. A água começou a ferver e a carne se desprendeu completamente dos ossos; pegou neles mas não sabia como arranjá-los e arrumou-os sobre a mesa, tudo ao contrário e misturado. Feito isso, gritou por três vezes:
– Em nome da Santíssima Trindade, levanta-te, ó morta!
Repetiu essas palavras três vezes, mas os ossos não se mexiam; tornou a repeti-las mais três vezes, mas sem melhor resultado. Então, raivoso, bateu os pés e exclamou:
– Levanta-te, diabo de uma princesa! Levanta-te, senão pobre de ti!
Mal acabava de pronunciar essas palavras, eis que São Pedro entrou pela janela, com o seu disfarce de soldado aposentado, e disse:
– Que estás fazendo aí mau ímpio? Como pretendes ressuscitar a defunta se baralhaste todos os ossos?
– Meu coração, fiz o melhor que pude! – respondeu Folgazão.
– Bem, por esta vez ainda te vou tirar de apuros; mas lembra-te disto: se tentares outra vez fazer milagres, as coisas te correrão mal; também não pensos em exigir ou aceitar qualquer recompensa do rei.
São Pedro dispôs os ossos na sua ordem natural e disse três vezes:
– Em nome da Santíssima Trindade levanta-te, ó morta!
A princesa levantou-se tão sadia e formosa como antes. Km seguida, o apóstolo tornou a sair pela janela, como havia entrado. Folgazão estava bem satisfeito por lhe ter corrido tudo bem, mas não se conformava em não receber nada: “Gostaria de saber o que se passa na sua cachola! – pensava consigo mesmo; – o que ele dá com a mão direita tira com h esquerda; não vejo bom senso nisso!”
Mas, indiretamente, por meio de alusões hábeis arranjou-se de modo a fazer com que o rei mandasse encher- lhe a mochila de ouro; depois foi-se embora.
Quando ia saindo, encontrou São Pedro na porta da cidade, que lhe disse:
– Vês, que espécie do homem tu és! Não te ordenei que não exigisses e não aceitasses nada? E eis-te com a mochila cheia de ouro!
– Que culpa tenho eu, – respondeu Folgazão, – se mó põem dentro à força!
– Previno-te que não tentes meter-te nessas coisas pela segunda vez, senão pobre de ti!
– Olá, irmão, não tenhas receio! Agora já tenho o ouro, pura que hei de amolar-me a lavar ossos de defunto?
– Sim, sim; – disse São Pedro, – o ouro não vai durar muito! Mus, pura que não tornes a invadir searas alheias, darei à tua mochila uma virtude; tudo quanto desejares ter, tê-lo-ás. Adeus, não me verás nunca mais.
– Adeus! disse Folgazão, enquanto pensava: “Estou contente que se vá esse tipo original! Naturalmente não te correrei atrás!” E nem sequer voltou a pensar no poder maravilhoso da mochila.
Foi andando de um lado para outro, perambulando e esbanjando alegremente o dinheiro como fizera da outra vez. Quando lhe restaram apenas quatro vinténs, passou por uma hospedaria e pensou: ”Livremo-nos dês- te dinheiro!” E mandou que lhe servissem três vinténs de vinho e um vintém de pão.
Estava lá sentado a beber e nisso chegou-lhe ao nariz um delicioso cheiro de pato assado. Olha para cá, olha para lá, viu que o hospedeiro tinha dois belos patos no forno. De repente, lembrou-se do que o seu camarada lhe dissera: que a mochila tinha a virtude de atrair para dentro dela tudo quanto ele desejasse. “Experimentemos com os patos!” E, saindo fora da hospedaria, disse:
– Quero na minha mochila os dois patos assados que estão no forno.
Acabou de dizer isso e desafivelou a mochila, e dentro dela viu os dois patos assados.
– Ah, assim está certo, – disse, – agora estou feito na vida.
Foi para o campo e lá tirou os patos para comer; estava-os saboreando com grande prazer quando se aproximaram dois operários e ficaram a olhar cobiçosamente o pato, que ainda não fora cortado. O amigo Folgazão pensou: “Um chega bem para ti.” Então chamou os dois operários.
– Vinde, meus amigos, aqui tendes este pato, comei-o à minha saúde.
Os operários agradeceram, dirigiram-se à hospedaria, pediram uma garrafa de vinho o um pão, depois desembrulharam o pato e puseram-se a comer. A hospedeira, que estava olhando para eles, disse ao marido:
– Esses dois operários estão comendo pato assado; dá uma olhadela para ver se não é um dos nossos que estavam dentro do forno!
O hospedeiro foi depressa e viu que o forno estava vazio.
– Ah, raça de ladrões! Quereis comer patos à custa dos outros! Aqui o dinheiro, vamos, senão vos dou uma lavada com a vara de marmelo!
Os pobres responderam:
– Nós não somos ladrões; foi um soldado aposentado quem nos presenteou com esse pato; ei-lo, lá fora no campo!
– Não me venham com histórias; o soldado esteve aqui mas saiu como qualquer homem honesto, eu reparei nele. Vós é que sois os ladrões, portanto deveis pagar-me.
Mas como não podiam pagar, o hospedeiro tocou-os para fora a pauladas.
Folgazão continuou o caminho e chegou a um lugar onde havia um magnífico castelo e, não muito longe, uma péssima hospedaria. Entrou e pediu um canto para dormir; o hospedeiro desculpou-se dizendo:
– Não há mais lugar; a hospedaria está toda cheia de hóspedes importantes.
– Admira-me que tais hóspedes venham para aqui em vez de irem para aquele esplêndido castelo!
– Realmente, – disse o hospedeiro, – mas ninguém se arrisca a ir ao castelo; todos os que o tentaram, não saíram com vida de lá.
– Bem, – disse Folgazão, – se outros tentaram a aventura, eu também quero tentar.
– Deixai disso! – replicou o hospedeiro, – arriscai a vida.
– Não será a primeira vez! – respondeu Folgazão. – Dai-me a chave e bastante de que comer e beber.
O hospedeiro entregou-lhe a chave e bastante comida e bebida. Folgazão dirigiu-se ao castelo, ceou alegremente e, quando ficou com sono, deitou-se no chão, pois não havia nem mesmo uma cama. Adormeceu logo, mas durante a noite foi despertado por um ruído infernal, e quando abriu os olhos viu na sua frente nove demônios que, fazendo uma roda, dançavam em volta dele. Então disse:
– Pulai quanto quiserdes, contanto que ninguém se aproxime de mim.
Os diabos, porém, aproximavam-se cada vez mais e com os pés horríveis quase lhe pisavam no rosto.
– Calma, calma, espíritos diabólicos! – disse Folgazão.
Mas os demônios comportavam-se cada vez pior. Então o amigo Folgazão zangou-se e gritou:
– Esperem, que vou acalmar-vos já!
Agarrou uma cadeira pelos pés e pôs-se a desancá-los. Mas nove demônios contra um soldado eram demais; quando ele malhava os que lhe estavam na frente, os outros que estavam atrás puxaram-no pelos cabelos e o arrastaram medonhamente pelo chão.
– Canalhas, diabos imundos, – gritou ele; – isso já é demais! Vamos, saltem todos para dentro da minha mochila.
Num abrir e fechar de olhos saltaram todos para dentro da mochila e ele, mais que depressa, afivelou-a bem e atirou-a para um canto. Fez-se logo profundo silêncio e Folgazão deitou-se novamente e dormiu até bem tarde. Então chegaram o hospedeiro e o fidalgo a quem pertencia o castelo a fim de saber o que havia acontecido. Vendo-o muito alegre e bem disposto, ficaram todos admirados e perguntaram:
– Como, os fantasmas não te fizeram nada?
– Que esperança! – respondeu Folgazão. – Prendi os nove na minha mochila. Podeis voltar tranquilamente para o vosso castelo; de hoje em diante não haverá mais fantasmas!
O fidalgo agradeceu muito; recompensou-o ricamente e pediu-lhe que ficasse ao seu serviço; seria bem tratado e cuidado pelo resto da vida.
– Não, – disse Folgazão; – estou muito habituado a correr mundo, prefiro continuar o meu caminho.
Despediu-se de todos e foi-se embora. Entrou numa forja, pôs a mochila sobre a bigorna e mandou o ferreiro e seus ajudantes malharem com toda força em cima dela. Os homens malharam com todo o gosto, fazendo cair seus enormes malhos sobre os demônios que urravam espantosamente. Quando Folgazão abriu a mochila, oito deles faziam mortos; o nono, porém, que se havia abrigado nas dobras do couro, estava vivo e saltou para fora, fugindo como um raio para o inferno.
Folgazão perambulou ainda muito tempo e teve tantas aventuras que seria longo demais contar. Por fim, ficou velho e pensou na morte. Então foi ter com um eremita, conhecido por todos como um santo varão, e lhe disse:
– Estou cansado de correr mundo; agora quero cuidar de entrar no Reino do Céu.
O eremita respondeu-lhe:
– Meu filho, há dois caminhos: um é largo e agradável e conduz ao inferno; o outro é estreito e árduo, esse conduz ao paraíso.
“Bem louco seria se escolhesse o caminho estreito e áspero,” – disse consigo mesmo o amigo Folgazão; e encaminhou-se pelo mais largo e agradável e assim foi ter a uma grande porta escura, que era a do Inferno. Bateu, e o porteiro foi ver quem era. Mas, dando com a cara do amigo Folgazão, assustou-se; pois era o nono diabo, aquele que conseguira escapar com alguns ferimentos das marteladas do ferreiro. Portanto, ao vê-lo aí, o dono da mochila, o diabo mais que depressa aferrolhou a porta e foi correndo dizer ao chefe:
– Aí fora está um sujeito que traz uma mochila nas costas e deseja entrar aqui; por favor, não o deixeis entrar, senão ele obrigará todo o inferno a meter-se dentro daquela mochila. Estive uma vez lá dentro e ele mandou malhar terrivelmente, quase me matando.
Diante disso, os demônios disseram de dentro a Folgazão que se fosse embora; ali ele não podia entrar.
“Se não me querem aqui, – resmungou ele, – irei ver se me aceitam no paraíso; em alguma parte tenho de me abrigar!”
Portanto, voltou para trás e andou, andou, até chegar à porta do paraíso. Lá bateu. O porteiro nesse dia era São Pedro; Folgazão logo o reconheceu e pensou: “Aqui pelo menos encontro um velho amigo, certamente terei mais sorte.” Mas São Pedro foi dizendo:
– Suponho que desejas entrar no paraíso!
– Deixa-me entrar, meu irmão, pois tenho que alojar-me em algum lugar; se me tivessem aceitado no Inferno, não viria amolar-te aqui.
– Não, – disse São Pedro, – tu não podes entrar.
– Então, se não queres deixar-me entrar, toma a mochila; não quero nada de ti!
– Está bem, dá aqui! – respondeu São Pedro.
Folgazão fez passar a mochila através das grades, São Pedro pegou-a e pendurou-a perto da sua cadeira. Então o amigo Folgazão disse:
– Desejo entrar dentro da mochila.
E num relâmpago, lá estava. Assim entrou no paraíso e São Pedro não teve outra solução senão ficar com ele.

 



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